É
feriado de Carnaval e somos recebidos na casa da família Pichetti, uma das mais
tradicionais e conhecidas de São Miguel do Oeste. O anfitrião nos aguarda,
para, pela primeira vez, ter sua história contada nas páginas do Jornal que
acompanha todos os sábados dos últimos anos. As pernas já não têm a mesma
força. As mãos, um tanto tremulas, perderam o seu viço. Mas a memória, a essa
permanece intacta! Como se o tempo não tivesse passado, como se os 84 anos de
existência não tivessem peso algum. Em uma conversa de cerca de duas horas,
chegamos à conclusão, essa memória fotográfica merecia ser estudada pela
ciência.
Isso
por que, o personagem de hoje nos conta em detalhes fatos vivenciados há mais
de 60 anos. Recorda com precisão marcos históricos e nos dá uma verdadeira
aula, digna das melhores universidades do mundo.
Antônio
Pichetti, advogado, historiador, escritor e ex-deputado estadual por três
legislaturas faz parte da história de São Miguel do Oeste. Nascido em Concórdia,
escolheu a cidade para viver. Recém formado, chegou ao Extremo-oeste em 1958,
quando São Miguel ainda era uma vila, recém emancipada e cortada por estradas
de terra vermelha. A região era tão remota, que a viagem até aqui levou três
dias. “Quando cheguei, lamentavelmente, a região era pouco povoada. Cheguei
para advogar, mas no começo não tinha muito trabalho. Me formei em Curitiba e
quando voltei para a minha cidade havia dois advogados, que me ‘aconselharam’ a
vir para o Extremo-oeste. Na verdade, o diálogo desses era para que eu não
fizesse concorrência em Concórdia”, recorda.
Quando
chegou a São Miguel, Pichetti se hospedou no antigo Hotel Oeste. Na bagagem,
uma biblioteca recém montada e uma boa soma em dinheiro, conquistada no
programa de televisão “O céu é o limite”, que participou ainda na época da
faculdade e onde dissertou sobre a Revolução Farroupilha, assunto o qual até
hoje tem pleno domínio e que rende boas conversas. “Cheguei no final de ano,
com o pensamento de que ia começar a minha vida aqui. Passava os dias
estudando, inclusive os finais de semana. Comprei uma chácara, não se tinha o
que fazer aqui. Eu tinha o dinheiro, ganho no programa de televisão, mas não
tinha o que comprar com ele, haviam poucos carros nessa região. Foi difícil, mas
me acostumei, afinal vim para ficar e já com objetivo de me eleger deputado e
ajudar o povo dessa região. Era o único advogado e pertencíamos a comarca de
Mondaí. Para se ter uma ideia, saía daqui de manhã cedo de ônibus e almoçava em
Iporã. Levava o dia todo para chegar”, cita.
A
esposa, Analita Mariani Pichetti, conheceu aqui e com ela teve os três filhos –
os dois homens escolheram o Direito, mas não o gosto do pai pela área criminal.
Esse foi o forte da atuação de Pichetti na advocacia. Em mais de 60 anos de
profissão, parou de fazer contas, mas acreditar ter passado de 600 júris
realizado, atuando 90% deles na defesa. “Sempre gostei da coisa vibrante do
crime, para mim compensava, mas atuei na grande maioria de forma gratuita. Sempre
fui muito duro, nenhum um pouco gentil nos júris”, enfatiza. Na região,
Pichetti realizou os primeiros júris nas comarcas de São Miguel do Oeste,
Dionísio Cerqueira e Itapiranga. É responsável por grande parte da evolução da
Justiça na região, ícone de todas as gerações. “Cheguei a fazer dez júris por
mês, uma época fiz dez aqui e outros 11 em Dionísio. Se matavam bem naquela
época por aqui. Poderia ter ganho muito dinheiro, mas mais da metade fiz de
graça, por amor a Justiça”, destaca.
A
memória fotográfica exemplar lhe rendeu bons frutos quando o assunto eram os
júris. Como quando acompanhou um em Chapecó e na falta de um advogado assumiu o
posto. “Pedi me dê meia hora que eu faço. Li o processo nesse tempinho e fiz o
júri, absolvi o homem”. Outra recordação é do momento mais marcante de sua
carreira. “O primeiro júri, no dia da minha formatura. Me formei e no mesmo
dia, à tarde, fui para o interior e acompanhei um amigo que ainda advoga, com
mais de 90 anos. Foi um júri muito difícil, por que o pai foi morto pelo filho,
com um golpe de foice. Um crime horrendo, que dá nojo, mas que precisava de um
defensor. É difícil, mas entra em jogo a sua consciência profissional. Ainda
assim, sempre preferi, gosto de coisas chocantes. E nesse júri,
especificamente, após uma acusação exemplar do promotor, entrou o jovem
advogado que se formará naquele dia. Comecei dizendo que ele merecia a forca,
fui forte e assim foi por 20 minutos. Nos 20 minutos restantes apelei para a
emoção, o júri tinha que ser feito e o meu trabalho era buscar sua absolvição.
Falei que por traz da criatura horrenda havia uma mãe e pedi permissão para ler
uma cartinha mal escrita, de uma mãe de um filho único, que estava passando
fome e que precisava do filho com ela, que, apesar do crime, queria a
liberdade. Resultado do júri: quatro à três, absolvido. Marcou por ser o
primeiro, mas mais pelo final. Quando saí, fui abordado por dois jurados, que
penalizados, fizeram uma vaquinha para repassar para a mãe. E a minha resposta
foi: ‘que mãe? Não sei se ele tem mãe, eu inventei a carta’. Ficaram bravos
comigo, mas não havia volta, eles já haviam votado”, recorda, para risos de
quem acompanha o relato de mais uma memorável história.
A
política foi outro ponto alto da carreira e da vida de Pichetti. Com apenas 28
anos, se elegeu deputado estadual. Se reelegeu e quando buscou uma cadeira na
Câmara Federal, que perdeu por apenas 80 votos, apesar dos mais de 35 mil
feitos. Se elegeu novamente deputado estadual, mas após optou por deixar a
política de lado. Com a sua luta política, conseguiu grandes obras na região,
como a abertura da rodovia que hoje liga São Miguel do Oeste a São Lourenço do
Oeste, e abertura e asfaltamento da BR-282. Foi duas vezes secretário da
Agricultura, quando fomentou a suinocultura, a produção de grãos e idealizou o
que mais tarde se tornaria o programa troca-troca de sementes, além de trazer
para a região o modelo de educação do colégio agrícola. Como político, viveu
uma aventura na amazônia, quando em 1980 foi chefe da Casa Civil em Rondônia,
fomentando o desenvolvimento e geração de energia para a população local. Foi o
primeiro delegado Regional da Polícia Civil. Escreveu três livros e em seu
escritório hoje, estão anotações para mais uma obra, dessa vez sobre a história
de Juscelino Kubitschek.
A
vida profissional ficou de lado há apenas três anos. “Eu ainda tenho
capacidade, mas fiquei doente, fisicamente. Meus filhos seguiram no Direito,
mas não na área criminal e são mais modestos do que eu. Por que eu, eu sou bom mesmo”
Entre
tantas idas e vindas, compromissos em todo o Estado e fora dele, temporadas
residindo em outros locais, a família sempre voltou para o mesmo local. São 40
anos vivendo na mesma casa, em São Miguel do Oeste. “São Miguel do Oeste foi um
abraço recíproco. Tenho muito apego por essa região e cidade, sempre voltei.
Tive muitas oportunidades fora, no Direito e na política, mas sempre troquei
tudo para voltar e fazer júris. Sou muito amarrado aqui, meus filhos nasceram
aqui, minha vida é aqui”.