Lucimar de Góes Couto, 44 anos, Magali de Oliveira, 40, e uma mulher grávida*, de 34. Elas tinham família, filhos pequenos e planos para o novo ano recém começado. Mas, em menos de 48 horas, essas mulheres foram assassinadas de forma violenta dentro de suas próprias casas. Em dois dias, Santa Catarina registrou três suspeitas de feminicídio, marcando o início de ano mais violento desde, ao menos, 2019. Os crimes já superam os casos de violência doméstica que resultaram em morte ocorridos em todo janeiro de 2020 e 2021 — nesses dois anos, o mês fechou com dois assassinatos. Em 2022, janeiro teve oito crimes do tipo, porém com uma morte nos cinco primeiros dias.
Patrícia Zimmermann D'ávila, delegada coordenadora das delegacias de proteção à criança, adolescente, mulher e idoso (Dpcami) de Santa Catarina, diz que o feminicídio, normalmente, é relacionado a brigas de casal, no entanto, reforça que este crime se encaixa em qualquer circunstância em que a vítima sofra algum tipo de violência doméstica e familiar, ou que tenha seus direitos violados pelo simples fato de ser mulher.
Os assassinos podem estar dentro de casa, como no caso da grávida de Benedito Novo, morta com um tiro na nuca disparado pelo próprio filho, um adolescente de 14 anos; ou podem até já ter feito parte do convívio familiar, como na situação de Lucimar, de São Bento do Sul, e Magali, de Canoinhas, assassinadas a facadas por seus ex-companheiros que não aceitaram o fim do relacionamento.— Nesta questão de violência doméstica e familiar, nós entendemos a morte da mulher independente do sexo do agressor, independente da orientação sexual da vítima. Ou seja, uma mãe que é morta por uma filha, uma avó que é morta por uma neta, uma filha morta pelo pai. É uma relação íntima de afeto, onde eles coabitam. Então, é feminicídio — explica a delegada.
Números e ações da Polícia Civil
Patrícia comenta que, nos primeiros quatro meses de 2022, o Estado registrou o triplo de feminicídios ocorridos no mesmo período do ano anterior. O ano fechou com 56 vítimas — uma a mais do que em 2021.O que esses dados mostram, segundo a delegada, é que eventuais aumentos ou diminuições no período não querem dizer que o ano vá fechar com a taxa maior ou menor, mas que esses acréscimos, principalmente no início do ano, podem ser explicados em épocas de festas e confraternizações.
— São períodos em que as pessoas ingerem mais bebida alcoólica, estão mais reunidas e, que, às vezes, os ânimos se alteram e acabam discutindo. São momentos que requerem maior atenção — afirma.A investigadora acredita que casos de feminicídios podem ser evitados, principalmente quando a sociedade atua em conjunto para combater o problema. Pensando nessa aproximação com a comunidade, por exemplo, há uma exposição em cidades do Sul catarinense em que 20 vítimas de feminicídios são retratadas por artistas plásticos. Ao lado de cada pintura, tem um QR Code em que familiares das vítimas e mulheres que sofreram com violência doméstica podem relembrar essas histórias, que em alguns casos contam com participação dos delegados que acompanharam os casos.
— Precisamos, para redução desses números, o envolvimento da comunidade. Isso não é só problema de polícia, é problema de todo mundo — reforça a delegada.Como identificar um possível caso de violência doméstica
Patrícia destaca que a atenção precisa ser redobrada em casos onde relações íntimas de afeto passam a ser conflituosas. Alguns sinais de violência podem ser identificados de forma prévia, a fim de preservar a vida da vítima.No caso de uma relação conjugal, por exemplo, seja um casal hetero ou homoafetivo, os agressores se manifestam quando tentam controlar a vida da parceira, seja por ciúme excessivo, proibição de frequentar certos lugares, manter relação com outras pessoas ou vestir determinadas roupas.
— A mulher passa a ser um objeto, em que aquela pessoa tem o controle, a posse e usa como bem quer — define.
Os casos mais graves, normalmente, ocorrem quando há o término desta relação conflituosa. O aumento da tensão entre o casal fica ainda mais notório e, segundo a delegada, o risco de agravamento é real, principalmente quando a vítima tenta reconstruir a vida e começa uma nova relação amorosa.
Uma mulher é vítima de feminicídio a cada semana em SC
Já em relações de parentesco, quando não necessariamente há contato íntimo de afeto, a violência se apresenta em discussões relacionadas a questões de patrimônio e outros bens. O uso abusivo de álcool e drogas pode intensificar ainda mais os conflitos em relacionamentos, sejam eles matrimoniais ou familiares, aponta a investigadora.— Para o Estado, a vida é um bem muito precioso. Não tem bem material que suplante o valor da vida. Mas pra algumas pessoas, não. Uma casa, um carro, uma geladeira ou uma televisão valem mais do que a vida. Hoje, temos que tomar muito cuidado com as relações, com as convivências, com as maneiras que as pessoas encaram as vidas — alerta a delegada.
Como denunciar
As vítimas de violência podem registrar um boletim de ocorrência de forma presencial, em alguma unidade policial, ou online, na delegacia virtual da mulher, caso não queira ir até a polícia. Quando a vítima é uma vizinha, uma familiar ou conhecida, a orientação é ligar para o disque denúncia da Polícia Civil, no 181, e registrar a queixa, que é feita de forma anônima.Somente no ano passado, segundo dados do Tribunal de Justiça catarinense, mais de 17.300 medidas protetivas foram concedidas a vítimas de violência no Estado. O planejamento é que, neste 2023, a ferramenta da delegacia virtual seja aprimorada, para que a mulher seja rapidamente atendida sem precisar se deslocar.
— A ideia é atender a mulher onde ela está, sem que precise se deslocar até uma unidade policial. Qualquer aparelho que tenha conectado à internet, celular, computador... ela acessa a página da Polícia Civil, faz o boletim de ocorrência (BO) e já pede a medida protetiva de urgência pelo aplicativo. Então, por exemplo, uma avó está apanhando da neta, pode fazer o BO por lesão corporal ou ameaça e pedir a medida — exemplifica.Maioria das vítimas de feminicídio em SC não denunciou violência doméstica
Além da delegacia virtual, onde podem ser registrados os BOs, existe o aplicativo PMSC Cidadão, da Polícia Militar, que é indicado para mulheres que já têm seus casos acompanhados pela Justiça.No app, a vítima pode cadastrar sua medida protetiva e, caso o agressor desrespeite o mecanismo de segurança e a mulher se sinta ameaçada, ela tem acesso ao botão do pânico que, quando acionado, cai direto na central de emergência, que por sua vez, aciona agentes de segurança com urgência para o endereço solicitado.
A PM também conta com o programa Rede Catarina, que acompanha vítimas de violência doméstica. Já a Polícia Civil atua com o programa Polícia Civil Por Elas que, inclusive, possui grupos reflexivos para homens que praticaram violências contra mulheres.— Porque entendemos que nem sempre a cadeia é a solução. A prisão é a solução para o agressivo que não aceita a mulher. Agora, pra situação que precisa de acompanhamento, o grupo reflexivo é uma alternativa. O Estado tem feito todas as medidas e a ideia é, a partir de agora, desse novo governo, aprimorar essas ferramentas e implementar outras, para garantir proteção a essas mulheres — determina Patrícia.
*O nome da vítima grávida não é divulgado para preservar o adolescente envolvido no crime, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).