O Projeto de Lei 04/2025, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), propõe uma ampla reforma no Código Civil brasileiro, com a modificação de 1.122 dos 2.046 artigos da legislação vigente desde 2002. A proposta, atualmente em trâmite no Senado Federal, propõe alteração de diversas esferas do direito civil, as normas que regem as relações privadas entre os cidadãos – desde contratos e propriedade até questões familiares e sucessórias.
Enquanto a Constituição Federal estabelece os pilares do governo e os direitos fundamentais, o Código Civil atua como a "constituição do cidadão" no cotidiano. Sua estrutura atual divide-se em Parte Geral, que aborda pessoas, bens e fatos jurídicos, e Parte Especial, que trata de obrigações, direito de empresa, direito das coisas, direito de família e direito das sucessões.
"O intuito da revisão e atualização do Código Civil é a produção de um texto que oriente as novas dinâmicas da sociedade nas próximas décadas. A ideia é buscar um equilíbrio entre modernização e segurança jurídica, incorporando avanços já consolidados na jurisprudência e na doutrina", complementa.
1. Direitos Digitais:
Como pode ficar: O PL 4/2025 propõe a inclusão de um Livro de Direito Civil Digital. Isso consolidaria regras para situações no ambiente virtual, preenchendo lacunas na legislação atual. Abrangeria a proteção de dados no âmbito civil (complementando a LGPD), a responsabilidade civil por danos ocorridos online (como difamação ou fraudes virtuais) e a regulamentação específica de contratos eletrônicos, conferindo maior segurança jurídica a essas transações.
Como é hoje: O Código Civil de 2002 reconhece a família constituída pelo casamento, pela união estável entre homem e mulher e pela família monoparental. Embora a jurisprudência tenha avançado no reconhecimento de outras configurações familiares, como as homoafetivas e, em menor grau, as poliafetivas, o texto legal ainda é limitado. A socioafetividade é reconhecida principalmente em casos de filiação, mas não como um princípio geral para o reconhecimento de entidades familiares.
Como pode ficar: A reforma busca ampliar o conceito de família e introduzir o reconhecimento explícito da socioafetividade. Isso significa que vínculos familiares formados por laços afetivos, independentemente da origem biológica ou da formalização tradicional, passariam a ter previsão legal expressa. Isso poderia facilitar o reconhecimento de direitos em uniões estáveis homoafetivas e possivelmente abrir caminho para o reconhecimento de outras configurações familiares baseadas no afeto.
3. Responsabilidade Ambiental:
Como é hoje: A responsabilidade por danos ambientais é tratada principalmente por leis específicas (como a Lei de Crimes Ambientais e a Política Nacional do Meio Ambiente) e pela Constituição Federal. O Código Civil aborda a responsabilidade civil de forma geral, e pode ser aplicado a danos ambientais, mas não há um capítulo específico para reparação e promoção da sustentabilidade nesse contexto.
Como pode ficar: A reforma propõe o fortalecimento da responsabilização civil por danos ambientais dentro do Código Civil. Isso pode incluir a previsão de mecanismos específicos para a reparação integral do dano ambiental (como a restauração da área degradada), a consideração da função socioambiental da propriedade e a possibilidade de ações civis públicas para a defesa do meio ambiente, complementando a legislação ambiental existente.
4. Reprodução Assistida:
Como é hoje: O Código Civil de 2002 não possui normas específicas sobre reprodução assistida. As questões relacionadas a essa área são tratadas principalmente por resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela jurisprudência, o que gera certa insegurança jurídica devido à ausência de uma lei formal.
Como pode ficar: A reforma pretende estabelecer normas sobre procedimentos e direitos relacionados às técnicas de reprodução assistida. Isso pode incluir a regulamentação da filiação em casos de reprodução heteróloga (com doação de gametas), os direitos dos envolvidos (doadores, receptores, filhos gerados), questões relacionadas ao consentimento informado e a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade em algumas situações.
5. Divórcio Unilateral:
Como é hoje: O divórcio no Brasil pode ser consensual ou litigioso. O divórcio consensual pode ser realizado em cartório se não houver filhos menores ou incapazes e se houver acordo entre as partes. O divórcio litigioso depende de processo judicial, mesmo que uma das partes não concorde. Não existe a figura do divórcio puramente unilateral extrajudicial.
Como pode ficar: A reforma propõe a permissão para o divórcio unilateral em cartório, mesmo que a outra parte não concorde inicialmente. Essa possibilidade estaria condicionada à ausência de litígio sobre questões como guarda de filhos, alimentos e partilha de bens, que deveriam ser resolvidas posteriormente em vias próprias. O objetivo é simplificar e agilizar o processo de dissolução do casamento para quem deseja se divorciar, independentemente da concordância imediata do cônjuge.
6. Autonomia Progressiva:
Como é hoje: O Código Civil estabelece a capacidade civil plena aos 18 anos. Antes disso, crianças e adolescentes são considerados relativamente ou absolutamente incapazes, sendo representados ou assistidos por seus pais ou tutores. Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já reconheça a progressiva capacidade de crianças e adolescentes, o Código Civil não incorpora esse princípio de forma explícita em todas as suas disposições.
Como pode ficar: A reforma busca o reconhecimento da autonomia progressiva de crianças e adolescentes no Código Civil. Isso significa que a capacidade de exercer direitos e deveres civis seria avaliada de acordo com o grau de desenvolvimento e maturidade da criança ou adolescente, e não apenas com a idade cronológica. Isso poderia ter implicações em diversas áreas, como a participação em decisões familiares, a manifestação de vontade em questões de saúde e a possibilidade de praticar certos atos da vida civil com maior autonomia, mesmo antes dos 18 anos.
7. Animal de Estimação:
Como é hoje: O Código Civil de 2002 considera os animais como "bens semoventes", ou seja, objetos que podem ser movidos. Essa classificação os coloca na mesma categoria jurídica de coisas, como carros e móveis, desconsiderando sua natureza senciente e os laços afetivos com seus tutores.
Como pode ficar: A reforma propõe a considerar animais de estimação como integrantes do "entorno sociofamiliar". Essa mudança de paradigma jurídico reconheceria a importância dos animais de estimação na vida das pessoas e poderia gerar a possibilidade de reparação por danos sofridos por eles (em casos de maus-tratos, por exemplo) ou por danos causados pela perda do animal devido à negligência de terceiros.
8. Função Social do Contrato e da Propriedade:
Como é hoje: O Código Civil de 2002 já estabelece a função social da propriedade (art. 1.228, § 1º) e a função social do contrato (art. 421), mas esses conceitos são por vezes interpretados de forma restrita. A autonomia da vontade e a liberdade contratual ainda são princípios fortemente valorizados.
Como pode ficar: A reforma visa ampliar a relevância da função social tanto nos contratos quanto na propriedade. Isso significa que a interpretação e a aplicação das normas contratuais e de propriedade deverão considerar com maior ênfase os seus impactos sociais, a promoção da igualdade e o equilíbrio social. Isso poderia influenciar a revisão de contratos considerados abusivos ou que não atendam ao interesse coletivo, bem como a exigência de que a propriedade cumpra sua finalidade social e ambiental.
"O projeto propõe a alteração de mais de 800 artigos e a adição de 300 novos dispositivos (total 1.122 artigos). Com tamanha alteração, considera-se que não se trata de reforma e sim de uma nova legislação, com repercussão direta aos cidadãos e na economia brasileira", diz a advogada Adriana Novelli Caldeira, mestre em Direito Civil.
Ela também aponta que várias proposições feitas pela comissão estão respaldadas pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal e em enunciados das Jornadas em Direito Civil. Mas a especialista também levanta questionamentos sobre alterar uma legislação civil recente que está em vigor há menos de 25 anos.
Após a tramitação e eventual aprovação no Senado Federal, o PL 4/2025 segue para a análise da Câmara dos Deputados. Caso seja aprovado sem alterações, será encaminhado para a sanção presidencial.