Um projeto de lei que tramita desde 2023 na Câmara dos
Deputados pretende tornar facultativo o alistamento militar no Brasil,
obrigatório para homens que completam 18 anos e, desde este ano, facultativo
para mulheres. Apresentada pelo deputado Weliton Prado (PROS), a proposta
aguarda parecer da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.
Após esta análise, o projeto ainda precisa passar pela
Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Em nota, a assessoria da
Câmara informou que "como a matéria tramita em regime conclusivo, caso
aprovada nas duas comissões pode seguir direto para o Senado Federal, se não
houver recurso para apreciação do texto em plenário".
Segundo dados do Ministério da Defesa, em média 1,5 milhão
de jovens se alistam anualmente, mas apenas 6% acabam incorporados. "A
maior parte das dispensas ocorre por excesso de contingente, devido à limitação
de vagas para o ingresso", pontua a pasta, em nota.
Outros motivos de dispensa são problemas de saúde, arrimo de
família, residência em municípios não tributários e outras situações previstas
na lei e no regulamento.
O ministério lembra que aquele que não se alistar no ano em
que completa 18 anos fica em débito. "Além do pagamento de uma multa, fica
impedido de obter passaporte ou prorrogar sua validade, prestar exame ou
matricular-se em qualquer estabelecimento de ensino, obter carteira
profissional ou registro de diploma de profissão liberal, inscrever-se em
concurso para provimento de cargo público, exercer cargo público, além de
outras penalidades previstas", alerta.
A obrigatoriedade explica o fato de que o número de
alistados anualmente não apresenta grandes variações. Questionada se há
registro de evasões, a pasta informou que não é possível responder. O Exército
também foi procurado, mas não atendeu à reportagem.
No site oficial do alistamento, as Forças Armadas defendem
que o serviço militar obrigatório "representa a oportunidade de o
brasileiro exercer o ato de cidadania de servir e defender a Pátria" e que
o trabalho significa "prestar um compromisso de defender a soberania da
Pátria e a integridade de seu povo".
Para o deputado Prado, tornar o alistamento facultativo
simplificaria a vida dos brasileiros. Ele justifica seu projeto como algo para
"desburocratizar a vida dos jovens brasileiros", entendendo que
"essa simples alteração legal" liberaria "milhões de jovens da
burocracia estatal, que dura por quase toda a vida adulta, já que os
certificados [de reservista, que comprovam que houve o alistamento] são
exigidos para os mais diversos atos". Na proposta, o parlamentar também
argumenta que a mudança permitiria "que as Forças Armadas se concentrem em
selecionar aqueles que realmente têm interesse em prestar o valoroso serviço
militar".
Na Europa, atualmente são poucos os países que têm como
obrigatório o serviço militar – Dinamarca, Áustria, Suécia, Noruega e Grécia
estão entre eles. Com o conflito entre Rússia e Ucrânia, alguns políticos de
outras nações europeias têm trazido debates sobre uma eventual necessidade de
um serviço militar obrigatório.
Deveria ser facultativo?
A discussão no Brasil está longe de ser consensual. Para o
historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual
Paulista (Unesp), a prestação compulsória do serviço hoje em dia "não faz
sentido nenhum" porque, em sua opinião, não traz benefício de formação aos
jovens e, ao mesmo tempo, não proporciona um treinamento efetivo para o caso de
uma guerra, em tempos de conflitos por "botões e sensoriamento
remoto", com "cada vez menos campos de batalha convencionais".
"O funcionamento das Forças Armadas no Brasil, em larga
medida, é obsoleto e inadequado aos desafios do século 21", avalia.
"A mobilização de volumoso contingente de jovens na manutenção desta
estrutura, além de extremamente dispendiosa, é cada dia menos relevante.
Trata-se, em verdade, de requisição compulsória de mão-de-obra temporária, de
baixa qualificação técnico-profissional e escolaridade, em geral, deficitária.
Afinal, são jovens recém-chegados à vida adulta. E eles passam pelo serviço militar
obrigatório, desempenhando funções e atividades temporárias, trabalhando, por
exemplo, como motoristas, em rotinas administrativas, cozinhas, mecânica de
veículos, operadores de equipamentos de informação e de comunicação."
Por outro lado, há questões cívicas e cidadãs. Pesquisador
na Unesp, o historiador Victor Missiato acrescenta que, "em tempos de paz,
o alistamento militar sempre teve um caráter cívico, dentro de uma visão de que
o Estado desenvolveria o cidadão, entre aspas, vadio, arruaceiro, que deveria
se colocar como alguém mais civilizado".
Ele também é contra a manutenção da obrigatoriedade do
serviço, ressaltando que hoje "existe por parte de muitos jovens o
interesse voluntário" em se alistar — porque uma parcela da sociedade
entende o serviço como porta de entrada em uma carreira.
Longa história…
O alistamento militar no Brasil começou a tomar a forma
atual há 150 anos. Na época, o recrutamento militar era, literalmente, uma
caçada humana — a expressão aparece em debates ocorridos na Câmara dos
Deputados e no Senado durante o período do Segundo Império.
Como não havia uma legislação prevendo o alistamento militar
obrigatório, o recrutamento ocorria à força, com militares de carreira
invadindo vilas e prendendo homens vistos como ideais para compor o Exército e
a Marinha.
"O recrutamento é um meio violento que a necessidade
nos obriga a empregar, porque sem ele não teríamos gente nem para tripular a
vigésima parte dos nossos navios de guerra", argumentou o então senador
Manuel de Assis Mascarenhas (1805-1867). Seu colega Pedro Fernandes Chaves
(1810-1866) lembrou que a fuga dos que não queriam ser caçados era justificada
pela "crueldade com que alguns comandantes castigam os soldados com
chibata", citando que havia casos que o castigado perdia os sentidos e
caía por terra. Já o senador Francisco de Montezuma (1794-1870) comparou o
serviço militar a um regime de trabalho forçado.
"A questão é que ninguém queria servir ao Exército porque as condições eram desumanas", comenta o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo (FESPSP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
A preocupação com a formação de militares nacionais fazia
parte do governo desde o início do período imperial. Devido ao reduzido número
de forças locais, Dom Pedro 1° (1798-1934) precisou lançar mão de mercenários
europeus nas guerras que empreendeu contra resistentes ao processo de
Independência ou à maneira como ele formava o Brasil.
Durante a Guerra do Paraguai, sangrento conflito que durou
de 1864 a 1870, a praxe na formação do Exército já eram as caçadas humanas.
Claro que muitos estavam imunes. Filhos da elite e religiosos escapavam. Pobres
que viviam sob a esfera de proteção de oligarcas regionais também eram
preteridos. O alvo principal acabava sendo indígenas e afrobrasileiros, no caso
ex-escravizados que haviam conseguido a alforria.
"O recrutamento militar sempre foi um desafio
operacional pois equivalia à prestação compulsória de trabalho e privação do
convívio social", contextualiza Martinez.
Enfim, a lei
Foi numa tentativa de organizar o recrutamento militar no
Brasil que o segundo e último imperador do Brasil, dom Pedro 2° (1825-1891),
publicou a primeira legislação sobre o tema, há exatos 150 anos. Pelo
dispositivo, alistavam-se primeiro aqueles engajados voluntariamente e, na
sequência, para compor o número, "por sorteio dos cidadãos brasileiros
alistados anualmente na conformidade da lei", ou sejam, "todos os
cidadãos idôneos" a partir de 19 anos.
A expressão "alistamento militar" foi empregada no
Brasil pela primeira vez com esta lei. Segundo Martinez, a terminologia é
"um testemunho do efeito negativo das práticas de formação dos corpos
militares sob o período colonial e o Império". "O novo termo sugeriu
que não há coerção, quando em essência ela permaneceu a mesma", compara.
Diversas exceções eram previstas ao serviço, como
deficientes físicos, doentes crônicos, estudantes universitários ou graduados,
religiosos pertencentes a ordens sacras, filhos únicos de viúva, entre outros.
Na prática, contudo, a legislação não vingou e as caçadas
continuaram a ser o principal artifício. Segundo especialistas, isso ocorreu
porque os ricos não queriam perder a isenção de seus filhos e grandes
produtores rurais não admitiam ficar sem a mão-de-obra de seus empregados, caso
eles fossem sorteados.
No Brasil republicano, uma nova lei acabou ratificando a
ideia do sorteio, em 1908. O atual modelo é resultado da legislação adotada em
1940. Uma nova lei aprimorou o modelo, em 1964, com a regulamentação publicada
dois anos mais tarde. E a obrigatoriedade do serviço militar para homens que
completam 18 anos está prevista pela Constituição Federal de 1988.