
Algo falhou. No caso de três crianças catarinenses, duas mortas e uma levada ao hospital com agressões graves, tudo em menos de uma semana, a rede de proteção a crianças e adolescentes não funcionou, e o pior cenário aconteceu. As histórias, ocorridas em Florianópolis, no domingo (17), e nas cidades de Joaçaba e Caçador, na quarta-feira (20), chocaram o Estado.
O primeiro caso envolveu um menino de 4 anos de idade que morreu após dar entrada no Multihospital, em Florianópolis, com suspeita de agressões e maus-tratos. A mãe do garoto passou por audiência de custódia e foi liberada. Já o padrasto segue preso preventivamente. O menino passou 12 dias internado em maio deste ano, quando já houve suspeita de violência familiar.
Na manhã de quarta-feira uma bebê de oito meses deu entrada no Hospital Universitário Santa Terezinha, em Joaçaba, no Meio-Oeste, com diversas agressões. Ela passou por cirurgia, mas não resistiu. O laudo feito pela Polícia Científica confirmou que a bebê havia sofrido lesões, inclusive fraturas, em diferentes estágios, o que sugere agressões contínuas.
A mãe, de 21 anos, foi ouvida pela Polícia Civil e negou que a filha tenha sofrido maus-tratos. O padrasto da menina também foi ouvido nesta quinta. Ninguém foi preso. O irmão da bebê, de 3 anos, também teve uma lesão suspeita identificada. Ele foi encaminhado para um abrigo após passar por exames.
Também na quarta-feira, um homem foi preso em Caçador suspeito de maus-tratos contra a própria filha, uma bebê de apenas dois meses. A criança deu entrada no Hospital Maicé com diversas lesões e precisou ser transferida para Joaçaba devido à gravidade do quadro. Ela tinha hematomas pelo corpo, além de fratura e sangramento no crânio. A irmã mais velha da bebê foi recolhida pelo Conselho Tutelar e encaminhada ao hospital para avaliação médica.
Dados do Anuário da Segurança, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostram que Santa Catarina registrou 2.483 ocorrências de maus-tratos contra crianças e adolescentes de 0 a 17 anos em 2024. A maior parte deles, 952 casos, aconteceu com vítimas de 5 a 9 anos de idade.
O levantamento também traz dados referentes a casos de lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica em crianças e adolescentes. Ao longo do último ano foram 1,821 casos registrados, com a maior incidência entre 14 e 17 anos, com 866 ocorrências.
O Estado registrou 24 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes em 2024: foram 8 vítimas de 0 a 11 anos e 16 vítimas de 12 a 17 anos. O número representa uma leve queda em comparação ao ano anterior, quando foram 29 mortes.
Mariana Macêdo, defensora pública e coordenadora do Núcleo da Infância e Juventude, Direitos da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência, acredita que o sistema de proteção falhou para se chegar a esses casos extremos, com agressões e até mortes.
— Sim, existiu com certeza uma falha para chegar nesse ponto. Primeiro a gente tem que entender a corresponsabilidade. A própria Constituição, as leis falam que é o Estado, a família e a sociedade que são responsáveis pelas crianças e pelos adolescentes. Mas aí o que a gente percebe enquanto instituição é que na parte da responsabilidade da sociedade ainda está muito tímida essa compreensão — detalha a defensora pública.
Ela destaca questões de vivências culturais, tanto no âmbito coletivo quando do próprio cidadão, de entender que ele possui a capacidade e obrigação de denunciar e levar adiante casos como esse. Ainda, o ambiente escolar, comunitário, o Conselho Tutelar e outros atores precisam atuar de forma conjunta em prol da proteção dessas crianças.
— Então eu percebo que também está faltando algum tipo de conscientização, reforçar a ação desses desses atores e atrizes, que também que atuam diretamente com essas situações que envolvem crianças, né, vítimas de violência — explica.
O juiz Fernando Machado Carboni, titular da Vara da Infância e Juventude e Anexos da comarca de Itajaí, também analisa que, por existir uma denúncia anterior — no caso do menino morto em Florianópolis — algum tipo de falha no sistema existiu.
— Alguma coisa falhou, porque se há primeiro uma denúncia de violência, isso tem que ser apurado até para evitar que volte a acontecer novamente — afirma
Ele integra a Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude (CEIJ), órgão vinculado à Presidência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), que atua junto às Varas da Infância e Juventude, e também com campanhas de conscientização e de denúncias, seja em escolas ou com membros da rede.
— É para que as pessoas possam denunciar, inclusive saibam quais são os canais de denúncia, o que tem que fazer, para onde tem que ir, quem tem que comunicar. Quando se faz campanha, as denúncias acabam chegando e se evita que o pior aconteça — destaca o juiz.
Atuação das entidades
Mariana Macêdo coordena o Núcleo da Infância e Juventude, Direitos da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência, um dos diversos órgãos que atuam na proteção das crianças e adolescentes, e explica como é a atuação da Defensoria em casos como esse.— A Defensoria atua na defesa das vítimas, dessas crianças e adolescentes que são frutos de maus tratos dos pais. A nossa atuação acontece na via judicial. Então a gente atua em favor deles nos casos que envolvem medidas protetivas, nos casos que estão relacionados aos acolhimentos, aos pedidos de guarda por outros familiares, que têm interesse em tirar a criança, o adolescente daquele ambiente de violência — explica a defensora pública.
Além disso, de forma extrajudicial, a Defensoria atua em diálogos com outros órgãos e entidades do sistema de garantias para tratar de políticas públicas e políticas de prevenção a fim de evitar casos como os registrados nesta semana. Esse tipo de medida integra as ações do Núcleo da Infância e Juventude, Direitos da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência, coordenado por Mariana.
Nos três casos específicos registrados em Santa Catarina nos últimos sete dias, a Defensoria Pública ainda não foi procurada. A defensora pública explica que é necessário que exista uma procura por parte dos familiares, por exemplo, para postular a guarda das crianças. No entanto, o órgão atua no diálogo com demais entidades para entender o contexto dos casos e verificar até o surgimento de outros registros.
— A gente, enquanto instituição, fica transtornada. Eu particularmente entendo que é inaceitável, qualquer tipo de exposição, de violência dessas crianças dentro do próprio lar — declara Mariana.
Já o Tribunal de Justiça tem duas áreas que atuam em casos como esse, explica o juiz Fernando Carboni. O Juizado da Infância e Juventude, que atua na proteção das crianças, e o Juizado Criminal, que busca punir os autores dos crimes.
— Em caso de óbito não tem mais o que fazer com relação à proteção, mas em caso de violência sim, às vezes tirar desse ambiente violento ou entregar para um outro familiar cuidar ou até mesmo colocar num acolhimento institucional — explica o magistrado.
Fernando atua na Vara da Infância e Juventude, na parte de proteção das crianças. Mesmo desempenhando a função na Comarca de Itajaí, ele afirma que a situação chamou atenção, especialmente o caso registrado em Florianópolis.
— Esse caso de Florianópolis que repercutiu bastante, que aconteceu o pior, que é tudo que não se quer que aconteça, que é que uma criança venha perder a vida — pontua.
Defensoria prevê atuação conjunta
A atuação da Defensoria Pública diante deste quadro é contínua, com ações nas frentes de educação e campanhas de conscientização. Mariana afirma que são realizadas ações em escolas estaduais e municipais para conversar com as crianças no intuito de auxiliá-las a identificarem que estão sendo vítimas de violência. Ainda, o órgão atua com professores e educadores.
Porém, diante dos casos que vieram à tona na última semana e chocaram a sociedade catarinense, a defensora pública defende uma atuação conjunta dos atores da rede de proteção, que devem dialogar de maneira integrada para propor novas ações.
— Eu tenho mantido contato com o Conselho Tutelar, com o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, para gente promover um encontro e tratar disso em conjunto para poder ter uma resposta mais rápida para a própria sociedade. Seja através da mobilização de uma campanha, de mais capacitações para os responsáveis, dos servidores que atuam com essas famílias, para eles identificarem melhor, mapearem melhor — detalha a defensora.
A mobilização já acontece por parte da Defensoria Pública para que essa resposta seja planejada e executada o quanto antes. Um encontro deve ser agendado entre os órgãos de proteção e de garantia de direitos para definir estratégias de forma interinstitucional e intersetorial.